18.1.11

Eu acho tão bonito isso de ser abstrato, baby.


Os pés doloridos faziam o velho movimento vai e vem para amenizar a dor de um dia exaustivo e dos vários quartos de horas perdidos na espera do ônibus. Cheiro de gente, barulhos, resmungos, uma confusão de odores misturadas a conversas vazias. A mente solta vagava entre a frustação com coletivos e o mistério da mente alheia. Centenas de cérebros travados em pensamentos dispersos ou repetitivos, procurando soluções, formas de viver ou morrer. Compras? Jantar? Contas? Atitudes? Assim seguia o inquérito mental, até que surgiu um livro intrometido na multidão.
 Um bastardo de capa verde, nunca antes lido pelos olhos que o fitavam. Esses assustados com a nova descoberta se viraram novamente para os pés que pararam repentinamente. Então as íris voltaram pelo mesmo caminho,hipnotizadas pela recente aparição, que ousou atormentar todo aquele tédio e cotidiano cinzento, transparecendo a satisfação da garota por pessoas com livros, que são sempre mais interessantes que pessoas com sacolas, bolsas contra mãos superprotetoras ou salgados barulhentos. Nada possível de ser carregado em coletivos atraia tanto a moça quanto livros, e olha que a presente no passado dessa história já havia visto muitos objetos não identificados por esses ônibus a fora.

E o vórtice que a guiara até ali, interrompeu seu botões e a levou novamente para o mesmo lugar, para as mesmas mãos, para o mesmo Kafka e seu processo. O nome ecoou na sua mente e suas lembranças rapidamente se agruparam em torno do famoso escritor. Não era desconhecido, havia escutado certa vez em uma música, desde então o nome estivera em sua lista de leituras remotas. Junto vieram os típicos pré-conceitos  de qualquer coisa ou ser existente, cult, alemão, velho, difícil, muito bom ou muito ruim. E os botões que já voltavam a maquinar desistiram de lutar e seguiram os olhos através das mãos sem nome que tinham outras peculiaridades além do livro, como seus olhos puxados, um alfinete na orelha, a camisa de recicle, os apaixonantes all star chuck taylor e um ideograma tatuado na nuca.

O suporte perfeito para segurar um clássico de bolso. E lá foram seus botões viajantes novamente, por uma tarde em uma praça qualquer, um colo quentinho e uma conversa de ideias , músicas, formas, um autor e a tatuagem misteriosa. Seus curiosos olhos, agora olhariam para outros tão apaixonados por livros e pela vida quanto os dela. E ela começaria a pensar que talvez, só talvez, todas as coisas sobre amor a primeira vista ou alma gêmea fossem verdade. Sim, e enquanto aqueles olhos brilhassem como os delas ela poderia acreditar nisso.
 Então, lentamente ela foi percebendo o movimento a sua volta. O ônibus acabara de chegar.


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